Internacional, Edição Nº 330 - Mai/Jun 2014
Ucrânia – retrato de um golpe de estado - Revanchismo neofascista e agenda imperialista
por Luís Carapinha
O triunfo golpista não corresponde à narrativa mediática dominante e ao olhar laudatório (de classe) que celebrou os tumultos na capital e a tomada do poder como genuíno levantamento popular e acto revolucionário. No caldo nefando da política ucraniana nas últimas décadas, a dinâmica determinante dos acontecimentos está muito além do protesto gerado pelo acumular da insatisfação social e a percepção da natureza corrupta da oligarquia – por muitos identificada com a clique do ex-presidente. Na verdade, a concretização do golpe não seria possível sem a maciça operação de ingerência assegurada pelo imperialismo – em que EUA e UE se conservaram alinhados no fundamental, não obstante os acentos e interesses descruzados e todo o ardor verbal trazido à liça.
A história deste golpe revela a inquietante dimensão e influência ideológica das correntes neofascistas na Ucrânia pós-soviética. A onda de exacerbamento nacionalista de acento reaccionário, fascista na essência, alcançou nestes últimos meses uma expressão quase avassaladora (adquirindo, inclusive, um certo carácter de massas) na metade do país que inclui a capital, dividindo o território da Ucrânia praticamente pela linha do rio Dniepre. A pedra de toque de toda a armação subversiva reside porém na conexão entre a escória neofascista e a agenda estratégica do imperialismo, pautada pelo poder e capacidade dos EUA. Um dado a reter, confirmando que o grande capital não hesita em promover forças que fazem do irracionalismo e obscurantismo a sua bandeira, quando se trata de materializar objectivos da carácter estratégico.
O protagonismo de forças e bandos armados de assumido cariz neofascista e neonazi constitui, precisamente, um marco impressivo e traço qualitativo do golpe de estado em Kiev. Todos reclamam o legado de Stepan Bandera, líder ultranacionalista e fascista ucraniano que colaborou com a ocupação nazi na II Guerra Mundial, a quem o anterior Presidente, Iúchenko – saído da «revolução laranja» de 2004 –, atribuiu postumamente o grau de «Herói da Pátria».
Não se trata já só do partido neofascista e xenófobo, «Liberdade», representado no parlamento, mas de uma chusma de organizações paramilitares de ideologia fascizante que «irrompem» e são celebrizadas pela Maidan (a Praça), de que é exemplo proeminente o Sector de Direita, e o seu líder, Dmitri Iároch. O assalto violento ao poder na capital e nos distritos do oeste e centro da Ucrânia ancorou-se nestas formações que serviram de tropa de choque. São elas que constituem o núcleo das denominadas forças de autodefesa da Maidan, cujo comando manteve vínculos directos com o «quartel-geral» da insurreição, desde a Embaixada dos EUA. Na atmosfera encarniçada de anticomunismo (a sede do Partido Comunista Ucraniano foi ocupada e o PCU ameaçado de ilegalização), russofobia e perseguição política, os representantes da direita liberal-nacionalista e da extrema-direita neofascista assumiram o poder em Kiev. Os golpistas passaram a controlar a Rada (parlamento ucraniano), ante a debandada de dezenas de deputados do Partido das Regiões, do presidente afastado.
O ultranacionalismo possui raízes históricas na Ucrânia, embora circunscrito à região do oeste que, entre 1919 e 1939, integrou a Polónia. Na nova era de «independência» que sucedeu ao fim da URSS (e lembre-se que a carta separatista do nacionalismo ucraniano desempenhou um papel não despiciendo na destruição da URSS), o poder dominante em Kiev foi forjado a partir da mitologia da «Grande Ucrânia» e a imposição de uma política de estado de assimilação nacional e ucranização forçada. O peso das ligações históricas com a Rússia e da população ucraniana russófona obrigaram a recuos e acomodamentos, mas a linha central nacionalista manteve-se. Ao longo dos anos que distam do período de agonia da URSS, na viragem da década de 90, as agências do imperialismo e a diplomacia dos EUA, da UE e da NATO, não regatearam a meios para apoiar o nacionalismo ucraniano, aprofundando a divisão interna. A aposta no anticomunismo, branqueamento do fascismo e na revisão da história, em que sobressai o papel da UE, é outro elemento afim. O papel estruturante da guerra ideológica ajuda à compreensão de como se chegou à situação actual.
É certo que o ressurgimento de tendências e correntes de filiação neofascista, no quadro da arrastada crise estrutural do capitalismo, não é exclusivo da cena política ucraniana. Contudo, após o golpe da Maidan a Ucrânia parece ter ganho, tristemente, a dianteira.
Do mesmo passo, e contrariamente à roupagem popular-democrática-patriótica e profusa mitologia pró-europeia com que se pretende escamotear a realidade e benzer o novo poder, a precipitação dos acontecimentos na Ucrânia configura um golpe feito, sobretudo, à medida dos interesses do grande capital financeiro e transnacional, contando com o apoio ou a conivência dos principais oligarcas ucranianos. O governo em funções não aspira a mais do que a uma espécie de intendência do FMI, rumo serventuário e vende-pátria que espera ver consolidado com a realização das eleições presidenciais antecipadas, apontadas para 25 de Maio. O primeiro-ministro em exercício, Iatséniuk, promete cumprir piamente todas as directivas inscritas no gravoso caderno de encargos da organização com sede em Washington. Os novos empréstimos do FMI seguirão directos para as contas do capital financeiro transnacional, resguardando e reciclando a exposição à ameaça de insolvabilidade e derrocada da exaurida economia ucraniana. Ao mesmo tempo, serão impostas a Kiev condições políticas e exigidas duras «reformas» económicas e sociais de já bem conhecido conteúdo dos povos.
A realidade do golpe e o cortejo de iniquidades que o envolvem possuem um significado e consequências profundas. Que não se resumem, apenas, à passagem a uma nova etapa na vida da antiga república soviética, ou ao rasgo dramático na escalada de confrontação do imperialismo com a Federação Russa, após mais de duas décadas de expansão (com três alargamentos) da NATO para leste. Estão à vista os resultados dramáticos para a soberania e a unidade do país e o bem-estar dos trabalhadores e povo ucranianos. O golpe reaccionário, saudado na Maidan aos brados de «Glória à Ucrânia», compromete o futuro do país e vulnerabiliza ainda mais a situação económica ucraniana, à beira da bancarrota. O sucesso na legitimação do golpe de estado e a queda da Ucrânia na órbita dos interesses hegemónicos dos EUA e UE equivalem a um novo patamar de instabilidade e riscos agravados para a paz no continente europeu e a segurança internacional.
Cabe recordar que o pretexto que desencadeou o assalto ao poder – reeditando, agora em cor castanha, a epopeia bufa laranja do final de 2004 – foi a suspensão do acordo de Associação com a UE, anunciada em Novembro, nas vésperas da Cimeira de Vilnius da Parceria Oriental da UE. O acordo que prevê a implementação de uma zona de livre comércio com a Ucrânia é amplamente favorável aos interesses monopolistas vigentes na UE. Em troca de algumas benesses à oligarquia local, da retribuição devida para com o servilismo dos decisores políticos ucranianos e do aceno cúmplice a uma «adesão europeia» que ninguém vislumbra no horizonte (aos ucranianos promete-se acelerar a liberalização dos vistos na UE), Kiev compromete-se a abrir o mercado interno nacional à gula insaciável dos grandes grupos económicos da velha Europa. As consequências económicas e sociais deste contrato de penhora da soberania e independência ucranianas afiguram-se desastrosas, mas esta é a lei do capitalismo. O directório de Bruxelas, que sabe ao que corre, não aguardou sequer pela realização das eleições antecipadas de Maio (não, certamente, por ter a mais leve dúvida quanto à sua democraticidade), para rubricar com os representantes do poder ilegítimo ucraniano o capítulo político da Associação. Washington aplaudiu o acto simbólico. Do outro lado do Atlântico, não se esconde a importância da Ucrânia na estratégia para conservar a hegemonia dos EUA. A subsecretária do Departamento de Estado, Victoria Nuland, presença frequente em Kiev nos últimos meses, vangloriou-se mesmo dos mais de cinco mil milhões de dólares investidos pelos EUA desde 1991 na promoção da «democracia» na Ucrânia.
A ingerência nos assuntos internos da Ucrânia atingiu níveis inéditos nos últimos meses e semanas. De modo contínuo, um séquito de dirigentes e altos funcionários dos EUA e das instituições e países da UE desfilou nos corredores do poder em Kiev e saudou ao vivo os sitiantes aquartelados na Maidan. A imprensa foi dando conta de recados, ameaças e exortações diariamente dirigidos ao Executivo de Ianukóvitch desde as principais capitais transatlânticas e da sede da NATO.
Note-se que o acordo com vista à saída negociada da crise, subscrito por Ianukóvitch e os três principais líderes da oposição a 21 de Março – e que inclui as assinaturas dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e Polónia e do representante do MNE francês –, foi rasgado e reduzido a cinzas em menos de 24 horas. O líder do Sector de Direita, força desconhecida até Outubro de 2013, desafiou os seus termos – que previam o desarme imediato dos grupos armados, o regresso à Constituição de 2004, a concretização de uma reforma constitucional definitiva e a posterior realização de eleições presidenciais até ao final do ano –, exigindo em modo de ultimato a demissão do Presidente. Do campo da oposição signatária e equipa mediadora da UE ninguém alçou o texto assinado, ainda com a tinta fresca. De facto, o acordo de 21 de Março constituiu a acta de capitulação (e definitiva perda de face) de Ianukóvitch e do poder constitucional. A manobra é reveladora da suprema hipocrisia e cinismo empregues pelos governos ocidentais em toda a crise da Ucrânia. Não restam dúvidas que a aposta do grande capital passou sempre pela cartada subversiva e o aventureirismo golpista. A Ucrânia é hoje a linha avançada da estratégia contra a Rússia.
Washington, Bruxelas e Tóquio apressaram-se a reconhecer a legalidade do novo poder fantoche. Fecham os olhos à catadupa de decisões que carecem de mínima legitimidade, à histeria nacionalista e clima de intimidação reinante na capital ucraniana e em vastas regiões do país. A formação, decidida pelo poder ilegítimo, de uma Guarda Nacional de inegável tique falangista, com a integração dos bandos armados, não merece uma palavra de repúdio. Pelo contrário, a NATO – que deslocou meios bélicos para as suas fronteiras orientais – renovou o compromisso em prestar ajuda militar a Kiev, enquanto surgem notícias dos planos das autoridades de facto em recorrer aos serviços de agências mercenárias norte-americanas para pôr em ordem as regiões do leste e sul do país avessas ao poder da Maidan.
A situação evidencia a capacidade do imperialismo em instrumentalizar e tirar partido do sentimento de descontentamento instalado na sociedade ucraniana. Objectivamente, a insatisfação social acumulada não é desligável dos resultados desastrosos da restauração capitalista. A depressão económica que sucedeu ao desaparecimento da URSS atingiu níveis particularmente severos na Ucrânia. O PIB contraiu-se em -60% no final da década de 90 (comparativamente a 1990). Ao contrário de outras antigas repúblicas soviéticas, como a Bielorrússia, em 23 anos de independência a Ucrânia nunca recuperou o nível económico alcançado no quadro da URSS. O PIB de 2013 ascendeu apenas a cerca de 70% do valor do produto da Ucrânia soviética em 1990. As consequências sociais deste colapso marcam a Ucrânia contemporânea, em que avulta a elevada taxa de pobreza (das maiores na Europa) e desigualdade social. A corrupção e a degradação da vida política alcançaram aqui um nível abominável, constituindo a outra face da moeda do esbulho privatizador e da pugna entre clãs oligárquicos pela (re)divisão da propriedade e poder político. Não se podem ignorar as profundas alterações do tecido social. O apelo da propaganda da Maidan encontra eco principalmente entre as camadas emergentes urbanas e a alta burguesia que constituem a base social da consolidação do capitalismo em todo este período. Os estratos intermédios da nova burguesia viram a sua condição social ascender, sobretudo, com a recuperação relativa da última década e meia, e tendem a olhar com desdém para o passado soviético. No entanto, a contradição de classe não é o elemento saliente do conflito que divide o país. As clivagens, rivalidades e contradições no interior da classe dirigente – perpassadas e ampliadas pelo factor nacional, a par da permanente ingerência imperialista – sobrepõem-se à estrita dimensão da luta de classes, relevando para primeiro plano a questão nacional e a escala geopolítica. A dimensão de classe parece seguir eclipsada nas circunstâncias complexas do conflito ucraniano. Traço a que não são alheias as debilidades e ausências do movimento sindical independente e da organização da classe operária e dos trabalhadores na Ucrânia. Sem o fortalecimento qualitativo desta componente e da sua estrutura política e alianças sociais – tarefas em que o papel dos comunistas é insubstituível – a Ucrânia continuará a deslizar para os impasses do nacionalismo e o espectro da divisão e ditadura, aprofundando a alienação da soberania e submissão ao domínio dos grandes monopólios.
A lógica funesta de transformação do país em peão avançado da estratégia ofensiva de contenção e instabilização da Federação Russa é absolutamente contrária aos interesses fundamentais do povo e estado ucranianos. O desenlace na Maidan mostra que a linha de pressão sobre a Rússia constitui na conjuntura actual uma das principais frentes activas da rearrumação de forças global, inseparável da decadência relativa dos pólos da tríade imperialista e dos EUA em particular (veja-se o apoio expresso pelos BRICS à Rússia).
Muito se joga em torno da crescente campanha anti-russa. EUA e UE reagem com nervosismo ao projecto de criação da União Económica Euro-Asiática previsto para 2015 (Rússia, Bielorrússia e Casaquistão). Surpreendentemente agita-se o fantasma da ressurreição da URSS, fingindo-se ignorar tudo o que de substancial desautoriza a analogia.
Sem dúvida em todo o desenrolar da crise ucraniana ressoam os abalos do processo de desintegração da URSS. A Ucrânia deve as suas fronteiras de 1991 ao poder soviético. Apesar das curvas apertadas da história e de tragédias, como a fome do início dos anos 30 que atingiu a república, a par de outras regiões da URSS, é durante a época soviética que foi realizado da forma mais plena, como nunca antes na história, o direito à auto-determinação e à soberania do povo ucraniano. Milhões de ucranianos deram a vida para a libertação da ocupação nazi e a imorredoura vitória da URSS sobre o fascismo que abriu uma nova época nas relações internacionais. No seio da federação soviética, a Ucrânia atingiu altos níveis de desenvolvimento em amplos domínios.
Contudo, os efeitos profundos do processo de gradual perda de capacidade económica (relativa) do modelo cristalizado na URSS; da burocratização corrosiva da vida política e social – acabando por levar ao anquilosamento fatal do PCUS, ao descalabro da perestroika e traição e capitulação da direcção soviética – ainda permanecem coordenadas essenciais para a compreensão da dinâmica prevalecente na sociedade e política ucranianas. As fragilidades manifestas do movimento revolucionário não foram superadas. E no entanto, em parte significativa da população perduram sentimentos de afecto e nostalgia em relação à União Soviética. É disso testemunho a defesa corajosa dos monumentos a Lénine e as bandeiras vermelhas, soviéticas e comunistas, erguidas nas praças das cidades do leste e sul do país e na Crimeia. No referendo esquecido de 17 Março de 1991 a opção favorável a uma Ucrânia soberana no seio da União Soviética recolheu mais de 80% dos votos na república. Mas a 1 de Dezembro de 1991, mais de 90% apoiou a proclamação da Independência da Ucrânia. Uma semana depois, a 8 de Dezembro, o «primeiro presidente» da Ucrânia, Kravchuk, foi um dos três subscritores do famigerado acordo de Belovej que – à revelia de todas as normas constitucionais da União – liquidou a URSS.
Sem mencionar o nome de Iéltsin, o presidente Pútin lembrou acertadamente no importante discurso proferido no Kremlin a 18 de Março corrente as responsabilidades da Rússia (então principal república soviética) na «parada de soberanias» que contribuiu para a liquidação da URSS. Simbolicamente, 75 anos depois do início da II Guerra (e 70 após a libertação da Crimeia das hordas nazis) forças neofascistas integram a instável coligação que assaltou o poder em Kiev. A situação constitui para a Rússia um desaire de significado estratégico. A reintegração da Crimeia, indiscutivelmente apoiada pela esmagadora maioria da população da península – que em 1954 passou a fazer parte da Ucrânia soviética –, só poderá atenuar a dimensão de uma derrota em que o capitalismo russo é também em grande medida responsável.
Está-se em presença de uma nova fase da escalada do imperialismo, com amplas repercussões no plano mundial. À investida estratégico-militar, junta-se a tentativa de forçar o isolamento político de Moscovo e a ameaça de sanções económicas de largo espectro. Não se esconde a ânsia de voltar a ver os epígonos da escola de Gaidar dos anos 90 – a 5.ª coluna russa – no comando dos destinos da política russa. Moscovo tem reagido com firmeza, mas convém ter presente o acento liberal e a teia de dependência das finanças e economia russas da globalização capitalista. O recrudescer exponencial das hostilidades e a debilidade de uma economia, excessivamente dependente do petróleo e gás, colocam o Kremlin perante intrincados dilemas. A resposta aos desafios colocados clama por um esforço efectivo de consolidação e unidade nacionais. Mas com que forças e rumo? Conduzirá a situação ao reforço de tendências autoritárias e chauvinistas do capitalismo russo ou, ao invés, poderá abrir para uma guinada de sentido patriótico e popular? São incógnitas de peso para futuro da Rússia e a correlação de forças mundial. Exigindo o melhor dos comunistas e das forças mais lúcidas da multinacional Federação Russa. E mobilização ampla dos trabalhadores e povo russos.